O fim da bunda (e outras perdas)
Um conto autobiográfico (quem vai dizer que não?). É hora de lutar pela bunda, antes que seja tarde. Uma dica linguaruda. Vem que vem!
LIVRO ABERTO
Da primeira à última página, nunca havia lido nada tão ridículo e sem sentido. Cada parágrafo um desperdício total de tempo do leitor. Esse ghostwriter era realmente bom: sua autobiografia estava perfeita!
CADÊ A PALAVRA QUE ESTAVA AQUI?
Eu sei que a língua é mutável, viva, se adapta e se reconfigura ao sabor do novo, que sempre veeeeeeeeeeem (ler ao som de Elis). Acho isso fantástico, estou longe de ser uma purista neurótica agarrada aos livros de gramática do início do século passado.
Mas tem coisas que me deixam chateada… poxa, pra quê, sabe?!
Poderia estar falando do excesso de estrangeirismos e buzzwords do mundo coorporativo? Do dialeto Linkediner? Das traduções preguiçosas que geram o uso de expressões descabidas como “suportar fulano em tal decisão” (no sentido de apoiar) e o famigerado “é sobre-qualquer-coisa” (que vem matando a machadadas os maravilhosos e funcionais “tem a ver com”, “diz respeito a”, “quer dizer que”, etc.)? Poderia. Mas nem é isso que tira minhas noites de sono, só me faz revirar os olhos.
O que me chateia MESMO, que considero um crime HEDIONDO, uma perda IRREPARÁVEL para as conversações diárias no nosso idioma é a aposentadoria compulsória de termos maravilhosos, capazes de trazer para qualquer frase um brilho, uma luz, um carisma, uma COISA, que seus substitutos da modinha não chegam nem perto. Sou contra!
E já que quem sabe faz a hora não espera acontecer, trouxe pra cá algumas dessas pérolas linguísticas para que vocês, quem sabe, me ajudem a salvá-las da extinção iminente.
ESCANGALHADO/A
(1. Que se desmanchou ou se desconjuntou; desmantelado. 2. Que sofreu dano; arruinado, partido.)
Notem a maravilhosidade desse termo! Ele enche a boca do falante e traz um peso, uma ênfase, que não é qualquer simples “quebrado/a” que vai dar conta. A pessoa quando chega e fala “essa semana foi foda, eu estou ESCANGALHADA”, te dá uma verdadeira noção dos dias de luta que enfrentou, você nem ousa convidar para o rolê, você oferece chá, dorflex e colo, sabe?
O ESCANGALHAMENTO é mais que uma derrotazinha qualquer, um cansaço simples, é um combo completo da humilhação física e moral. Não pode morrer!
BOMBOLEIA/O
(não tem no dicionário)
Mas isso não quer dizer que não exista em nossos corações! Especialmente nos corações de quem cresceu na VIla Ema (bairro da Zona Leste de SP) nos anos 80. Um termo muito usado pela minha finada vó Maria. Percebam o lúdico que emana dessa palavrinha que parece fofa, mas é todo um combo passivo-agressivo de ofensas. Diz-se de quem age de forma inocentemente burra, de quem se deixa passar pra trás por qualquer zé-mané.
O ser BOMBOLEIO não é apenas tolo, ou burro, ou equivocado, é um ser rodando um bambolê de tudo isso, perdidinho na vida. Não pode acabar, jamais!
CUMBUCA
(1 Recipiente fabricado com a casca do fruto da cuieira, usado como utensílio doméstico de indígenas e caboclos, para conter água ou qualquer outro líquido)
Se você nasceu há mais de dez anos (se não, o que você tá fazendo aqui, cadê seus responsáveis?), sabe que sempre usamos essa palavra linda e sexy pra designar qualquer recipiente pequeno, fundo e arredondado de uso doméstico. Uma CUMBUCA de feijão, a CUMBUQUINHA de sobremesa... Daí me vem um/a desinfeliz e mete um BOWL na boca pra chamar nossos potinhos. Ah, faça-me o favor!
Percebem o grau da loucura? CUMBUCA x BOWL, não tem nem comparação.
BUNDA
Isso, ela mesma, a boa e valha BUNDA. Escutem o que eu digo: se não agirmos rápido, esse patrimônio cultural nacional ficara só na memória. “Mas, Luciana, tá louca? Eu nunca vi tanta bunda.” Hmmm, será mesmo? Olhe atentamente, você verá que praticamente ninguém mais rebola a BUNDA, rebola a RABA; ninguém quer ficar com a BUNDA grande, mas com uma RABA enorme. É a RABA que desce até chão, que senta, que quica, enquanto a BUNDA ser pegunta “onde foi que eu errei?”.
Eu realmente não sei em qual momento essa substituição começou a ser feita, nem porque, mas ela ganha força a níveis alarmantes!
Agora me digam: vamos permitir essa completa inversão de valores em nossa sociedade? Vamos deixar que as futuras gerações percam a sonoridade percussiva e malemolente de BUNDA e se contentem com a crueza seca da RABA? Eu, da minha BUNDA não abro mão! Agora deixo pra consciência de vocês.
Aliás, se você também sofre por alguma palavra do coração que está sendo lançada ao exílio, conta aqui! Juntos, podemos salvar esse seres indefesos do nosso vocabuário.
We are the WORDS, we are the childreeeen….
Pra ficar no assunto língua pra que te quero, uma diquinha relacionados ao assunto.
O quê?
Perfil de Jana Viscardi no Instagram (@janaisa)
Na definição da própria: “Uma linguista engraçadinha interessada por como nos comunicamos. Porque importa.”
Por quê?
A Jana é superdivertida e faz um trabalho excelente de análise de construção do discurso na imprensa, de reflexão sobre o uso da lingua nas redes sociais e um tanto de outras coisas bem interessantes. Dica de ouro para quem sabe que a forma como a gente fala reflete, reforça e constrói muito da realidade em que vivemos.
Abaixo, um “aperitivo” dos pontos que a Jana traz pra gente repensar a maneira como falamos e também como consumimos discursos e o que eles representam.
Muito bom!!